domingo, 13 de janeiro de 2013

Teatro do Oprimido:
memória e ancestralidade

Por: William berger
(ator, assistente social e multiplicador do teatro do oprimido)


EXPERIÊNCIAS teatrais COM POVOS TRADICIONAIS NO Espírito Santo: 

os pomeranos I 
(Domingos Martins)


H
 á algum tempo fui alertado pelo poeta Waldo Motta sobre trabalho do psicanalista Carl Gustav Jung. Desde a leitura de “O Homem e seus Símbolos” despertou-se uma chama de auto-conhecimento em mim. Auxiliado por Waldo, me lancei a analisar meus sonhos e os acontecimentos de minha vida desde uma perspectiva simbólica. Quando ainda estava no Rio de Janeiro, de 2009 ao início deste ano (2012), tive contato com o movimento do Teatro Negro. Em oficina no Grupo Nós do Morro, no Vidigal, conheci especialmente a artista Eliete Miranda, que dança a cultura do povo afro-brasileiro com tamanha força e intensidade a ponto de sempre emocionar seu público.
Convidado ao final da oficina para participar de sua Cia de Dança, a Corpafro, Eliete despertou em mim outra chama que veio aumentar o fogo do auto-conhecimento: a importância da memória e da ancestralidade. Durante dois intensos anos entre o trabalho de Eliete Miranda e também com o teatrólogo Amir Haddad e do antropólogo Roberto Damatta (meu professor na PUC-Rio), pude beber intensamente na fonte da cultura negra, também com minha orientadora do mestrado em Serviço Social Denise Pini Rosalém da Fonseca. Tanto Denise como Eliete pesquisam Orixás femininos: Oxum, Obá, Iansã, Nanã, Yemanjá, mergulhando nas raízes mitológicas e no universo social de mulheres-deusas e mulheres-negras da Bahia e do Rio de Janeiro. Denise também pesquisa escritoras negras dos EUA onde fez seu mestrado em Estudos Latino-americanos. Amir Haddad destaca como base de seu trabalho o Carnaval, o Futebol e o Candomblé. Roberto Damatta completa a leitura com seus clássicos “Carnavais, Malandros e Heróis” e “A Bola que Corre Atrás dos Homens”.
De posse dessa sabedoria milenar, e de nossa cultura popular brasileira extremamente diversa, onde o Teatro de Rua de Amir Haddad e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal se tornaram o cimento de minhas práticas, passei a me perguntar, no contato com esses artistas e pesquisadores: quais são as minhas raízes, de onde vim, quem sou e onde quero chegar? Uma questão que Waldo Motta também havia me provocado em mais de sete anos de trabalho ao seu lado.
Olhei para trás e vi minha terra, o solo de onde saí, o Espírito Santo, o povo pomerano, também o negro quilombola, de onde tenho raízes com meu avô materno e o povo cigano, o qual herdei também por linhagem materna. Por parte de meu pai: os pomeranos e os alemães, também os descendentes de italianos no Brasil.
Começo esse texto falando de minhas próprias raízes, pois aprendi estar aí o fio da meada, a ponta do novelo. Puxar essa ponta, pode nos possibilitar o eterno retorno à fonte criadora da Cultura onde se encontram em estado de fusão todas as nossas lembranças que remetem à infância e inclusive aquelas das quais não lembramos, mas que fazem parte do substrato comum da memória coletiva e do que Jung chama de Inconsciente Coletivo, onde habitam os Arquétipos, imagens e princípios criadores da humanidade.


No início de 2012 decidi retornar à minha terra e o convite veio da Associação Diacônica Luterana, instituição da IECLB, para atuar na formação de jovens lideranças. O objetivo: ministrar aulas de Comunicação e Expressão e Corpo em Expressão com foco na metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, trabalho no qual venho mergulhando desde o ano de 2004 e do qual ministrei duas oficinas na ADL em 2009 e em 2011.
Além das aulas na ADL recebi a responsabilidade de assumir junto com o pedagogo Gilmar Hollunder o Departamento de Desenvolvimento Comunitário,  a partir do qual propus à instituição oficinas de Teatro do Oprimido para as comunidades e paróquias do Sínodo, com enfoque especial em aspectos da memória e da ancestralidade.
Acompanhado de meu companheiro de trabalho e multiplicador de Teatro do Oprimido  Alex Reblim Braum, a primeira a pedir a nossa presença foi a Paróquia de Califórnia em Domingos Martins, nas serras do Espírito Santo, região fria onde os pomeranos a século e meio vêm mantendo e reiventando seus constumes tradicionais trazidos da Europa no início do século XX, quando aqui chegaram no período da imigração e fugidos do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Seguem algumas imagens do trabalho.


Esta árvore centenária, tanto quanto o templo luterano de mais de 140 anos criam uma espécie de equilíbrio com o lago e a casa (Yin e Yang). Ao fundo há uma reserva ambiental onde prevalece a Mata-Atlântica e um clima ameno. Desenvolvemos jogos e exercícios das 5 categorias do Teatro do Oprimido: 1. Sentir Tudo que se toca; 2. Escutar Tudo que se Ouve; 3. Ver Tudo que se Olha; 4. Ativando os Vários Sentidos; e 5. Memória dos Sentidos.  Aplicamos a técnica “Ser Humano no Lixo”, do qual fizeram uma mulher que tem de trabalhar dentro e fora de casa, cuidar da roça e dos filhos, presa à casa, sem tempo para usufruir da vida na comunidade. Seguindo o costume local e uma tradição luterana, ao final da oficina nos juntamos em oração por esse povo e pela humanidade, por familiares e por nossas memórias, dessa vez em torno da árvore ressignificada com nossas experiências teatrais entre corpo, espaço, memória e ancestralidade.


O Corpo, a Árvore e o Espaço



Sentir o espaço e sua dinâmica pela presença desta árvore centenária em mim foi um ponto essencial para intuir algumas direções das reflexões entre corpo e espaço, memória e ancestralidade, propostas para o grupo adequando dessa forma técnicas de Teatro do Oprimido. O jeito doce e a simplicidade, o sorriso do povo pomerano de Califórnia parece estar plasmado no espaço. Povo e ambiente em constante troca. É claro que são muitas as degradações socioambientais, como o desmatamento e os agrotóxicos, o alcoolismo e as drogas entre os jovens principalmente, mas quando se chega a esse lugar, se respira uma aura ancestral.   
A grande árvore-mãe abraça todo o povo. Contaram-me uma história de que certa vez houve um grande conflito na comunidade, uma disputa: alguns queriam derrubar a árvore e depois de muita conversa decidiram mantê-la de pé. O sagrado se “manifestou” e a força desse ser que é a árvore e as memórias que giram ao seu redor e correm vivas em sua seiva mantém viva a comunidade.  Não é por acaso que o símbolo escolhido por Augusto Boal para o método do Teatro do Oprimido é uma árvore. A Árvore é um dos símbolos mais fortes da humanidade. As imagens falam. . .

Árvore do Teatro do Oprimido


Jovem Pomerano. Califórnia (Domingos Martins-ES) 03 de 2012.


Técnicas de Teatro do Oprimido: “Ser Humano no Lixo”


Jovem e criança pomeranas de Califórnia com a revista Metáxis do Centro de  Teatro do Oprimido


Jovens pomeranos: corpos em relação comunitária


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


“Viagem Imaginária”: exercício da 4ª categoria do Teatro do Oprimido (ativando os vários sentidos)

Esquema “Corpo em Expressão”


Os africanos têm na árvore Baobá o epicentro de várias culturas. Em torno dela vários povos se reúnem para realizar rituais aos seus ancestrais. A Árvore liga o que vem das profundezas com os céus.  No candomblé do Brasil, por exemplo, Iroko, é um Orixá que é Árvore. Para os orientais o corpo é comparado a uma árvore: a raiz está na base da coluna vertebral, a cabeça é seu topo os membros são galhos: somos árvores ambulantes e movimentamos florestas de pensamento sensível. 
A palavra Religião vem do latim Religare, que significa religar-se ao divino, perdido ou esquecido em nosso corpo. Para os povos tradicionais e também os povos orientais, o religare só é concebível pela experiência corporal. Teresa de Ávila encontrou esse princípio em uma época onde o corpo sofreu uma total  repressão, a Idade Média. O único conhecimento que se valorizava era o simbólico vindo apenas dos homens, a mulher era puta, bruxa ou santa. Com frequência Teresa foi acusada de todas essas alcunhas. Era apenas uma mulher que buscou a Cristo de Corpo e Alma unidos. Cristo não era um ser abstrato, ela o podia tocar e experienciar com seus sentidos.
Sem dúvida, Teresa já preconizava um pensamento Holístico (do grego holos, todo), onde somos um totalidade. Corpo espaço, consciência e ação então inteligados em uma enorme teia. Nenhum ato está isolado.
Pudemos explorar nessa oficina com os pomeranos também a investigação a respeito de uma memória corporal, pois trazemos em nosso corpo as marcas do passado. Cada corpo carrega em si a história do indivíduo, de sua coletividade e da própria humanidade.
Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos tradicionais, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.

           Walter Benjamin afirmou que o contato com o divino se produz na linguagem. Destaca o lado mágico desta, quando, por exemplo, Deus nomeia sua criação. A queda do homem do paraíso lhe extraiu a capacidade de nomear as coisas no jardim do Éden; e na Torre de Babel se produziu a “superdenominação”. A linguagem podia agora ser usada para mentir e confundir, e passou a requerer o juízo para se distinguir entre ambos os aspectos (2009, p. 372).
          Não custa lembrar aqui que na cultura dos indígenas Guarani-Mbyá, mestres da oralidade, a palavra assume lugar central. Em seu ritual denominado Nimongaraí, próximo à colheita do milho e das chuvas torrenciais do final do verão, o ceu cheio de raios, manifestação de Tupã, forma o contexto onde o pajé recebe de Deus os nomes das crianças recém-nascidas. Esse nome secreto, dado apenas aos que fazem parte de sua cultura, designa o destino do indivíduo. Para alguns, seu nome indígena é tão secreto que não pode ser revelado a ninguém além do pajé e a si próprio, caso contrário a pessoa poderia perder a própria vida.



Considerações finais

           O resgate das memórias dos povos tradicionais presentes em nossos corpos, base simbólica de gestos, sons, imagens e palavras, suscita também, em nosso país, a urgência cotidiana de resgate da alteridade e da cidadania negada.

           Isso implica viver o mundo de uma maneira nova: olhar o passado em busca da origem e daí as vozes silenciadas as quais ninguém sabia que aí estavam. Assim não só os vivos, mas os mortos nos fazem demandas (2010). E é em nossos corpos que ecoam essas vozes.
          A experiência significa também os sonhos não cumpridos. O tempo em Benjamin é como um relâmpago fenomenológico. É preciso estar no meio das trevas, pois só pode ver a luz do dia quem é capaz de atravessá-las, nos lembra Santa Tereza D’Ávila. É preciso atrever-se a dar um salto sem saber o que está do outro lado. Ir ao que está silenciado em nós, desqualificado e assim naturalizado, quase como um arqueólogo. A inovação, como futuro está no passado. Temos um corpo e muitas indagações a serem feitas. Um paraíso de possibilidades ou o inferno da ignorância. "As perguntas seguem abertas" (SEPÚLVEDA, 2010).



Referências Bibliográficas

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

JAY, Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009.

SEPÚLVEDA, Teresa Matus. “Aportes de Walter Benjamin al Trabajo Social Contemporâneo”. Notas da Palestra. Universidade do Chile e PUC-Rio, 2010.

2 comentários:

Unknown disse...

Amigo William,

Achei fantástica a sua proposta voltada focada na questão da ancestralidade. Penso que este ocultamento das nossas raízes e da nossa história colabora para que a sensação de vazio e baixa auto estima, principalmente em uma sociedade que valoriza em demasia o supérfluo e efêmero. Parabéns! Estarei acompanhando seu trabalho.Um grande abraço. Sheila

William Berger: Arte Teatral, Antropologia Política e Sociedades disse...

Oi Sheila, muito obrigado pelo comentário, sem dúvida, você faz parte desta busca e nossas andanças teatrais com os Tupiniquim reforçaram esta perspectiva. É de fato uma questão fundacional da identidade nacional a baixa auto-estima que foi posta pelo colonizador em nossa infância como Nação. Reconhecer e valorizar os saberes das diversas etnias, povos e nações indígenas e demais povos tradicionais pelo retorno à Ancestralidade, é uma dos maiores imperativos para esta sociedade Moderna Ocidental, degradada pela perda da experiência ritual. O Teatro e os Povos Indígenas nos apontam caminhos de resgate de nossa essência. Grande bj e saudades de nossos diálogo. Grande amiga!