domingo, 13 de janeiro de 2013

A Árvore do Teatro do Oprimido . . .

 

Arte gráfica: Marília Pozzibon


Ao longo de 23 anos de sistemático trabalho com o Centro de Teatro do Oprimido e seus multiplicadores Brasil a dentro e mundo a fora, nosso grande mestre Augusto Boal deixou como legado um método teatral profundamente transformador e humanizante: o Teatro do Oprimido. E não é à toa que o símbolo escolhido foi a Árvore, pois resgata o sentido da ancestralidade. Toda árvore é um universo completo e comporta sustentabilidade: o solo que é alimento, a raiz que aprofunda, alimenta e rompe a pedra, o tronco que sustenta, a copa que se expande, o fruto que envolve o pássaro, a semente viaja em seu interior. A árvore alimenta o mundo, e se expande: multiplica!
O Teatro do Oprimido começa sempre pelo alimento de sua árvore que é a Ética e a Solidariedade. Todas as cenas surgem de uma urgência, uma necessidade do grupo, uma opressão que seus participantes vivenciam e querem discutir com a sociedade.
O chão, a base que sustenta todas as intervenções do Teatro do Oprimido, é a realidade, consubstanciada na Economia, na Política e na Cultura e se amplia com a Pedagogia, a História, a Sociologia, os Direitos Humanos, a  Ecologia etc.
Todos os exercícios do Teatro do Oprimido se estruturam sobre três alicerces da comunicação: Palavra, Som e Imagem (raízes axiais). A Palavra recriada, está associada à poesia, à narrativa e ao teatro. O Som privilegia aqueles produzidos no e pelo corpo e com objetos do lixo (o lixo tem haver com o que é rejeitado, desprezado, o oprimido. Por isso temos que recriá-lo). E a Imagem, ao alegórico, à representação e desconstrução crítica do mundo das imagens, um mundo que a manipula para o lucro e  escravização dos espectadores passivos. Expressamos sempre a cara de cada grupo praticante do Teatro do Oprimido, seus temas, opressões e que mundo queremos. As imagens falam, gritam, cantam, dançam, expressam.  
 Somos o tempo todo invadidos por palavras, sons e imagens que nos ditam ordens imperativas de consumo e alienação, sempre esclareceu Boal.  
Cada grupo de Teatro do Oprimido, por exemplo, é incentivado a criar sua bandeira, que é uma versão crítica do grupo sobre a bandeira do Brasil, usando cores e formas que mostram a realidade tal como ela é e como queremos que seja.
Prossigamos a entender a técnica (forma) Teatro Fórum. Conforme relato dos curingas Olivar Bendelak e Cláudia Simone em oficina no Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro em 2006 (que também está presente na versão de Boal em seu livro “Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas”), surgiu de uma situação em um grupo quando uma participante trouxe para o encontro algumas cartas que o marido guardava, cartas essas de sua amante.
Como ela não sabia ler e escrever ele sempre a enganava dizendo que eram recibos do terreno que estavam comprando. Sempre que se aproximava do marido para conversar, esse, nervoso, mandava ela servir rapidamente o jantar. Ela então levou a situação para o grupo ajudá-la a resolver. Criou-se uma cena de TO e levaram a situação de opressão a público. Uma mulher da plateia se indignou muito e indicava aos atores como queria que fosse a intervenção. Só que nenhum dos atores e atrizes faziam da forma como ela desejava.
Então, após algumas tentativas, quando a mulher da platéia já ia desistindo e saía chateada do encontro, Augusto Boal a indagou por que ela estava se retirando. E a chamou então para subir e ela mesma fazer a cena do jeito que queria. E ela subiu, executou a cena no lugar da atriz, abriu o jogo com o marido, deu – lhe uma surra, o perdoou, e o colocou para servir o jantar. E assim surgiu a primeira intervenção do tipo Teatro Fórum, onde o próprio público é convidado a subir ao palco para realizar a intervenção na realidade que está sendo retratada na cena teatral. Um verdadeiro ensaio para a realidade mesma. O Teatro Fórum vem sempre para responder a uma questão ou um problema que o oprimido e/ou o grupo ainda não sabe como resolver.
Outra forma teatral da Árvore do Teatro do Oprimido é o Teatro Invisível (que vimos de forma suscinta acima), onde alguns atores ensaiam um texto que retrate uma situação que seja uma necessidade do grupo. Depois de alguns ensaios, se vai para a rua, ou um ônibus, um espaço público. As pessoas nesse espaço não sabem que a situação se trata de teatro e os atores fazem de tal forma a convencer as pessoas de que é uma situação cotidiana.
Dentro da situação alguns atores soltam frases que levem a uma discussão mais política sobre a situação que seria meramente cotidiana sem essa necessária mediação. Não se diz que é teatro ao final da intervenção. E daí seu caráter invisível. A intenção é que as discussões continuem nos ônibus, casas, etc. Ao final, os atores, um a um saem da situação e retornam ao grupo para discutir os resultados (longe dali, é claro).
O Teatro Legislativo é uma mistura interessante de Teatro Fórum com o ritual da câmara legislativa. E consiste no seguinte: realiza-se as intervenções do público na cena e, após, retira-se encaminhamentos que se transformam em proposta de leis. Quando Boal foi vereador no município do Rio de Janeiro, foram aprovadas 15 leis (13 municipais e 2 estaduais e existem mais algumas em tramitação). Todas foram retiradas das demandas discutidas na rua e em diversos espaços públicos, tendo a intervenção ativa dos participantes. Uma dessas leis, por exemplo, foi uma sugestão de uma moça de 15 anos em uma apresentação de Teatro Fórum e sessão de Teatro Legislativo no meio da rua a respeito do tema “DST AIDS”. A sugestão dela virou um projeto de lei, que foi aprovado e hoje serve de base para um amplo programa na Secretaria de Saúde do município do Rio e Janeiro, entre diversas experiências em variadas áreas como Terceira Idade, Saúde Mental, Criança e Adolescente, Juventudes, Reforma Agrária, Racismo, Direitos Humanos etc.
O “Arco-íris do Desejo” consiste numa série de exercícios que trabalham com as demandas subjetivas. Surgiu no exílio de Boal na década de 70, quando passou a praticar Teatro do Oprimido na Europa. As pessoas com as quais praticava diziam que não tinham problemas econômicos e políticos como na América Latina, onde surgiu o Teatro do Oprimido, mas reclamavam de solidão, depressão, tristeza, problemas (sociais) de ordem subjetiva.
Para tanto, Boal estruturou uma série de exercícios e jogos que culminaram no “Arco-íris do desejo”. A intenção final de Boal é fazer com que as demandas desses exercícios sejam levadas para o Teatro Fórum e, discutidas socialmente, sejam encontradas saídas coletivas: ver de quanto objetivo temos no subjetivo.
Em seu livro “O Arco-íris do Desejo”, Boal diz:

[ . . .] Ser ator é perigoso; porquê? Porque a catarse que assim se busca não é inevitável. Mesmo tendo todas as seguranças da profissão, mesmo tendo todas as proteções dos rituais teatrais, mesmo que se estabeleçam teorias sobre o que é a ficção e o que é a realidade, mesmo assim esses personagens despertados podem se recusar a voltar a dormir, esses leões podem se recusar a voltar para o zoológico das nossas almas e às suas jaulas.
Se assim é, podemos pelo menos contemplar a hipótese contrária: uma personalidade doente pode, teoricamente, tentar despertar personagens sadios, e isto com a intenção, não de reinviá-los ao esquecimento, mas de misturá-los à sua personalidade. Se tenho medo, tenho dentro de mim o corajoso; se posso acordá-lo, posso talvez mantê-lo desperto. [ . . .] Se o Ator pode ficar doente, o doente pode ficar Ator.                                                                                              (Boal, 2006, p. 52)

O Teatro Jornal surgiu na década de 1970, quando Boal praticava TO em associações, sindicatos e igrejas para discutir a questão política no Brasil e enfrentar a Ditadura Militar.
As Ações Diretas acontecem quando o grupo preparado vai para a rua, para o espaço público realizar as intervenções diretas na realidade.
O Teatro Imagem em termos práticos visa montar a imagem da opressão através de expressões com os corpos dos integrantes do grupo. Montar verdadeiras fotografias da cena. Uma pessoa sempre ficará de fora como testemunha, para dizer se a imagem montada realmente retrata a crise. Realizar rodízio de imagem com diferentes pessoas para montar e para ser testemunha.
Na pintura: contar uma história com três imagens pintadas pelo grupo. Deixar sempre que o público faça primeiro seus comentários, depois o grupo se manifesta; nas esculturas: com objetos diversos, e materiais recicláveis montar esculturas da situação de opressão e criar figuras de seres humanos onde cada participante coloca um objeto por vez sem tirar do lugar a posição do objeto de outra pessoa. Experimentar também em diversas posições no espaço.
A realização de exercícios de imagem da cena descondiciona o aprisionamento do corpo, das ações e da imaginação que a palavra pode criar se começamos direto pelo texto. Na estética do Teatro do Oprimido os objetos também contam história, integrados na tríade PALAVRA – SOM – IMAGEM, para potencializar as faculdades perceptivas dos oprimidos. Nesse processo são experimentadas diversas linguagens artísticas.
A Estética do Oprimido fundamenta-se na acertiva de que nós somos mais do que pensamos ser, podemos nos expandir intelectual e esteticamente para compreender o mundo e buscar sua transformação.
Conforme Boal,

A Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que quando, em cada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial – células do sistema nervoso – esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como bytes de um computador, armazenando informações estáticas. Eles não se esgotam nem se repletam – o saber não ocupa espaço diz a sabedoria popular! Ao contrário dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens simultâneas – sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais – enriquecendo suas funções e ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redes cada vez maiores de circuitos, estabelecendo relações entre circuitos conjugados que nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenham alguma semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.
(Projeto Teatro do Oprimido na Prevenção à Violência e à Criminalidade. Espírito Santo, 2008, p. 12)

Na Estética do Oprimido são três as principais vertentes, raízes da Árvore do Teatro do Oprimido, que ora citamos: Palavra, Imagem e Som.
A Palavra como símbolo, expressão dos desejos, esperanças, necessidades, experiências. A palavra e o sentido que recebe, carregada de desejos. Boal cita o exemplo da palavra Maria que vem associada a: “Maria, faz a comida”, “Maria lava, passa e varre a casa”. Maria é prenúncio de ordem, continência.
 Mas quando Maria escreve seu nome sobre o papel, porque sobre si tem muito a dizer, reflete sobre ele e o associa ao amor, ao prazer. Boal conclui sobre a palavra: “Escrever é uma maneira de dominar a palavra, ao invés de ser por ela dominado” (2008, p. 13).
A Imagem criada e produzida por nós e não apenas pelas máquinas[1] serve para recriar o mundo. Mudar a realidade, modificando as imagens dessa realidade. Através da pintura, da escultura, da poesia e da música se recria, reinventa o mundo.
Som, a música está presente em todos os recantos da vida humana. No corpo através dos ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (sono e fome). A música liga o humano ao seu divino perdido ou adormecido. Boal diz que é por ser tão importante (e perigosa diante da consciência desse ser humano) que os festivais e empresas fonográficas, distribuidoras encarceram a música para apenas alienar os ouvintes. A Música, o som produzido no e pelo corpo, com objetos recicláveis e também instrumentos cria a possibilidade de expansão do oprimido (2008).
A Sinestesia é a percepção simultânea de sensações diferentes. Palavra, Imagem, Som, Gosto, Cheiro, o todo que nos toma e nos leva de uma a outra área perceptiva (2008).
A Ética no Teatro do Oprimido é o ponto de partida para qualquer ação, exercício ou reflexão. É necessário a todo instante que o praticante de Teatro do Oprimido saiba por que age e qual o significado da ação ética de cada sujeito. Sem dúvida uma ética-crítica, que envolve cada sujeito humano e nos convida a fazer parte, agir. Em uma palavra: deixar de ser espectador para assumir a tarefa histórica de atuar. Afinal como diz Boal, “Todos podem fazer teatro, até os atores”.
Conforme Boal, a maioria de nós, nem sempre, usa os sentidos plenamente. Vivemos uma vida sem senti-la, e, tristemente, muitos não se dão conta disso durante toda a vida. Boal destaca que é preciso despertar o corpo, pleno de possibilidades para exercitar toda a sua potencialidade. Não só as palavras comunicam, temos um corpo pleno de expressividade, capaz de criar imagens, sons e palavras, que, recriadas artisticamente, possam romper com toda forma de opressão e que seja capaz de conduzir todos os oprimidos à descoberta da Liberdade e da Libertação: criarmos nossos caminhos ao caminhar.

Referências bibliográficas



BERGER, William & FONSECA, Denise Pini Rosalem da. O Teatro do Poder e o 
Teatro do Oprimido: formas de resistência e intervenção social em Caieiras Velhas.  
Aracruz, ES (2006-2011). Rio de Janeiro, 2012. 183p. Dissertação de Mestrado - 
Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


BOAL, Augusto. Stop: C’est Magique. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: 
1980.
_______. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. 6 ed. Rio de Janeiro. 
Editora Civilização Brasileira: 1991.
_______.O Arco-íris do Desejo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 2006.

_______. Jogos para atores e não-atores. 10 ed. Rio de Janeiro. Civilização 
Brasileira, 2007.

_______. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 

_______. Entrevista. Série Encontros com a Arte. Disponível em: 
http://www.youtube.com/watch?v=LWwzzDN2A1c&feature=related. Acesso em: 24 
set. 2011.

CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO. Projeto Teatro do Oprimido na Prevenção à 
Violência e à Criminalidade. Rio de Janeiro – RJ e Vitória – ES, 2008. (mímeo)



[1] - Estamos na era da “reprodutibilidade técnica” na expressão de Walter Benjamin, ou além dos “Tempos Modernos” de Chaplin?

Teatro do Oprimido:
memória e ancestralidade

Por: William berger
(ator, assistente social e multiplicador do teatro do oprimido)


EXPERIÊNCIAS teatrais COM POVOS TRADICIONAIS NO Espírito Santo: 

os pomeranos I 
(Domingos Martins)


H
 á algum tempo fui alertado pelo poeta Waldo Motta sobre trabalho do psicanalista Carl Gustav Jung. Desde a leitura de “O Homem e seus Símbolos” despertou-se uma chama de auto-conhecimento em mim. Auxiliado por Waldo, me lancei a analisar meus sonhos e os acontecimentos de minha vida desde uma perspectiva simbólica. Quando ainda estava no Rio de Janeiro, de 2009 ao início deste ano (2012), tive contato com o movimento do Teatro Negro. Em oficina no Grupo Nós do Morro, no Vidigal, conheci especialmente a artista Eliete Miranda, que dança a cultura do povo afro-brasileiro com tamanha força e intensidade a ponto de sempre emocionar seu público.
Convidado ao final da oficina para participar de sua Cia de Dança, a Corpafro, Eliete despertou em mim outra chama que veio aumentar o fogo do auto-conhecimento: a importância da memória e da ancestralidade. Durante dois intensos anos entre o trabalho de Eliete Miranda e também com o teatrólogo Amir Haddad e do antropólogo Roberto Damatta (meu professor na PUC-Rio), pude beber intensamente na fonte da cultura negra, também com minha orientadora do mestrado em Serviço Social Denise Pini Rosalém da Fonseca. Tanto Denise como Eliete pesquisam Orixás femininos: Oxum, Obá, Iansã, Nanã, Yemanjá, mergulhando nas raízes mitológicas e no universo social de mulheres-deusas e mulheres-negras da Bahia e do Rio de Janeiro. Denise também pesquisa escritoras negras dos EUA onde fez seu mestrado em Estudos Latino-americanos. Amir Haddad destaca como base de seu trabalho o Carnaval, o Futebol e o Candomblé. Roberto Damatta completa a leitura com seus clássicos “Carnavais, Malandros e Heróis” e “A Bola que Corre Atrás dos Homens”.
De posse dessa sabedoria milenar, e de nossa cultura popular brasileira extremamente diversa, onde o Teatro de Rua de Amir Haddad e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal se tornaram o cimento de minhas práticas, passei a me perguntar, no contato com esses artistas e pesquisadores: quais são as minhas raízes, de onde vim, quem sou e onde quero chegar? Uma questão que Waldo Motta também havia me provocado em mais de sete anos de trabalho ao seu lado.
Olhei para trás e vi minha terra, o solo de onde saí, o Espírito Santo, o povo pomerano, também o negro quilombola, de onde tenho raízes com meu avô materno e o povo cigano, o qual herdei também por linhagem materna. Por parte de meu pai: os pomeranos e os alemães, também os descendentes de italianos no Brasil.
Começo esse texto falando de minhas próprias raízes, pois aprendi estar aí o fio da meada, a ponta do novelo. Puxar essa ponta, pode nos possibilitar o eterno retorno à fonte criadora da Cultura onde se encontram em estado de fusão todas as nossas lembranças que remetem à infância e inclusive aquelas das quais não lembramos, mas que fazem parte do substrato comum da memória coletiva e do que Jung chama de Inconsciente Coletivo, onde habitam os Arquétipos, imagens e princípios criadores da humanidade.


No início de 2012 decidi retornar à minha terra e o convite veio da Associação Diacônica Luterana, instituição da IECLB, para atuar na formação de jovens lideranças. O objetivo: ministrar aulas de Comunicação e Expressão e Corpo em Expressão com foco na metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, trabalho no qual venho mergulhando desde o ano de 2004 e do qual ministrei duas oficinas na ADL em 2009 e em 2011.
Além das aulas na ADL recebi a responsabilidade de assumir junto com o pedagogo Gilmar Hollunder o Departamento de Desenvolvimento Comunitário,  a partir do qual propus à instituição oficinas de Teatro do Oprimido para as comunidades e paróquias do Sínodo, com enfoque especial em aspectos da memória e da ancestralidade.
Acompanhado de meu companheiro de trabalho e multiplicador de Teatro do Oprimido  Alex Reblim Braum, a primeira a pedir a nossa presença foi a Paróquia de Califórnia em Domingos Martins, nas serras do Espírito Santo, região fria onde os pomeranos a século e meio vêm mantendo e reiventando seus constumes tradicionais trazidos da Europa no início do século XX, quando aqui chegaram no período da imigração e fugidos do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Seguem algumas imagens do trabalho.


Esta árvore centenária, tanto quanto o templo luterano de mais de 140 anos criam uma espécie de equilíbrio com o lago e a casa (Yin e Yang). Ao fundo há uma reserva ambiental onde prevalece a Mata-Atlântica e um clima ameno. Desenvolvemos jogos e exercícios das 5 categorias do Teatro do Oprimido: 1. Sentir Tudo que se toca; 2. Escutar Tudo que se Ouve; 3. Ver Tudo que se Olha; 4. Ativando os Vários Sentidos; e 5. Memória dos Sentidos.  Aplicamos a técnica “Ser Humano no Lixo”, do qual fizeram uma mulher que tem de trabalhar dentro e fora de casa, cuidar da roça e dos filhos, presa à casa, sem tempo para usufruir da vida na comunidade. Seguindo o costume local e uma tradição luterana, ao final da oficina nos juntamos em oração por esse povo e pela humanidade, por familiares e por nossas memórias, dessa vez em torno da árvore ressignificada com nossas experiências teatrais entre corpo, espaço, memória e ancestralidade.


O Corpo, a Árvore e o Espaço



Sentir o espaço e sua dinâmica pela presença desta árvore centenária em mim foi um ponto essencial para intuir algumas direções das reflexões entre corpo e espaço, memória e ancestralidade, propostas para o grupo adequando dessa forma técnicas de Teatro do Oprimido. O jeito doce e a simplicidade, o sorriso do povo pomerano de Califórnia parece estar plasmado no espaço. Povo e ambiente em constante troca. É claro que são muitas as degradações socioambientais, como o desmatamento e os agrotóxicos, o alcoolismo e as drogas entre os jovens principalmente, mas quando se chega a esse lugar, se respira uma aura ancestral.   
A grande árvore-mãe abraça todo o povo. Contaram-me uma história de que certa vez houve um grande conflito na comunidade, uma disputa: alguns queriam derrubar a árvore e depois de muita conversa decidiram mantê-la de pé. O sagrado se “manifestou” e a força desse ser que é a árvore e as memórias que giram ao seu redor e correm vivas em sua seiva mantém viva a comunidade.  Não é por acaso que o símbolo escolhido por Augusto Boal para o método do Teatro do Oprimido é uma árvore. A Árvore é um dos símbolos mais fortes da humanidade. As imagens falam. . .

Árvore do Teatro do Oprimido


Jovem Pomerano. Califórnia (Domingos Martins-ES) 03 de 2012.


Técnicas de Teatro do Oprimido: “Ser Humano no Lixo”


Jovem e criança pomeranas de Califórnia com a revista Metáxis do Centro de  Teatro do Oprimido


Jovens pomeranos: corpos em relação comunitária


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


“Viagem Imaginária”: exercício da 4ª categoria do Teatro do Oprimido (ativando os vários sentidos)

Esquema “Corpo em Expressão”


Os africanos têm na árvore Baobá o epicentro de várias culturas. Em torno dela vários povos se reúnem para realizar rituais aos seus ancestrais. A Árvore liga o que vem das profundezas com os céus.  No candomblé do Brasil, por exemplo, Iroko, é um Orixá que é Árvore. Para os orientais o corpo é comparado a uma árvore: a raiz está na base da coluna vertebral, a cabeça é seu topo os membros são galhos: somos árvores ambulantes e movimentamos florestas de pensamento sensível. 
A palavra Religião vem do latim Religare, que significa religar-se ao divino, perdido ou esquecido em nosso corpo. Para os povos tradicionais e também os povos orientais, o religare só é concebível pela experiência corporal. Teresa de Ávila encontrou esse princípio em uma época onde o corpo sofreu uma total  repressão, a Idade Média. O único conhecimento que se valorizava era o simbólico vindo apenas dos homens, a mulher era puta, bruxa ou santa. Com frequência Teresa foi acusada de todas essas alcunhas. Era apenas uma mulher que buscou a Cristo de Corpo e Alma unidos. Cristo não era um ser abstrato, ela o podia tocar e experienciar com seus sentidos.
Sem dúvida, Teresa já preconizava um pensamento Holístico (do grego holos, todo), onde somos um totalidade. Corpo espaço, consciência e ação então inteligados em uma enorme teia. Nenhum ato está isolado.
Pudemos explorar nessa oficina com os pomeranos também a investigação a respeito de uma memória corporal, pois trazemos em nosso corpo as marcas do passado. Cada corpo carrega em si a história do indivíduo, de sua coletividade e da própria humanidade.
Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos tradicionais, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.

           Walter Benjamin afirmou que o contato com o divino se produz na linguagem. Destaca o lado mágico desta, quando, por exemplo, Deus nomeia sua criação. A queda do homem do paraíso lhe extraiu a capacidade de nomear as coisas no jardim do Éden; e na Torre de Babel se produziu a “superdenominação”. A linguagem podia agora ser usada para mentir e confundir, e passou a requerer o juízo para se distinguir entre ambos os aspectos (2009, p. 372).
          Não custa lembrar aqui que na cultura dos indígenas Guarani-Mbyá, mestres da oralidade, a palavra assume lugar central. Em seu ritual denominado Nimongaraí, próximo à colheita do milho e das chuvas torrenciais do final do verão, o ceu cheio de raios, manifestação de Tupã, forma o contexto onde o pajé recebe de Deus os nomes das crianças recém-nascidas. Esse nome secreto, dado apenas aos que fazem parte de sua cultura, designa o destino do indivíduo. Para alguns, seu nome indígena é tão secreto que não pode ser revelado a ninguém além do pajé e a si próprio, caso contrário a pessoa poderia perder a própria vida.



Considerações finais

           O resgate das memórias dos povos tradicionais presentes em nossos corpos, base simbólica de gestos, sons, imagens e palavras, suscita também, em nosso país, a urgência cotidiana de resgate da alteridade e da cidadania negada.

           Isso implica viver o mundo de uma maneira nova: olhar o passado em busca da origem e daí as vozes silenciadas as quais ninguém sabia que aí estavam. Assim não só os vivos, mas os mortos nos fazem demandas (2010). E é em nossos corpos que ecoam essas vozes.
          A experiência significa também os sonhos não cumpridos. O tempo em Benjamin é como um relâmpago fenomenológico. É preciso estar no meio das trevas, pois só pode ver a luz do dia quem é capaz de atravessá-las, nos lembra Santa Tereza D’Ávila. É preciso atrever-se a dar um salto sem saber o que está do outro lado. Ir ao que está silenciado em nós, desqualificado e assim naturalizado, quase como um arqueólogo. A inovação, como futuro está no passado. Temos um corpo e muitas indagações a serem feitas. Um paraíso de possibilidades ou o inferno da ignorância. "As perguntas seguem abertas" (SEPÚLVEDA, 2010).



Referências Bibliográficas

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

JAY, Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009.

SEPÚLVEDA, Teresa Matus. “Aportes de Walter Benjamin al Trabajo Social Contemporâneo”. Notas da Palestra. Universidade do Chile e PUC-Rio, 2010.