sábado, 12 de fevereiro de 2011

Memória, Corpo, Ancestralidade . . .

William Berger
(Ator, multiplicador do teatro do oprimido - CTO, mestre em Serviço Social)

Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos indígenas e também dos povos afrodescendentes, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.

Walter Benjamin afirmou que o contato com o divino se produz na linguagem. Destaca o lado mágico desta, quando, por exemplo, Deus nomeia sua criação. A queda do homem do paraíso lhe extraiu a capacidade de nomear as coisas no jardim do Éden; e na Torre de Babel se produziu a “superdenominação”. A linguagem podia agora ser usada para mentir e confundir, e passou a requerer o juízo para se distinguir entre ambos os aspectos (2009: 372).

Não custa lembrar aqui que na cultura dos índios Guarani-Mbyá, mestres da oralidade, a palavra assume lugar central. Em seu ritual denominado Nimongaraí, próximo à colheita do milho e das chuvas torrenciais do final do verão, o céu cheio de raios, manifestação de Tupã, forma o contexto onde o pajé recebe de Deus os nomes das crianças recém-nascidas. Esse nome secreto, dado apenas aos que fazem parte de sua cultura, designa o destino do indívíduo. Para alguns, seu nome indígena é tão secreto que não pode ser revelado a ninguém além do pajé e a si próprio, caso contrário a pessoa poderia perder a própria vida.

O poeta Waldo Motta sempre nos conta em suas oficinas "Poiesis" o mito africano de Exu-Yang, que, ao nascer, devora os nove ceus da cultura yorubana; encurralado no canto do nono ceu é obrigado por seu pai a devolver à vida tudo quanto devorara pronunciando o nome das coisas. À medida que pronuncia, a palavra se torna a coisa pronunciada.

Também Pierre Fatumbi Verger, em seu livro "Ewé" (folha), ao falar da magia e das ervas yorubanas menciona a palavra como veículo principal de encantos, receitas e feitiços africanos.

Como no pensador do teatro Antonin Artaud a respeito da palavra, nas culturas indígenas e africanas esta assume uma função mágica transformativa.

O resgate das memórias dos povos indígenas e afrodescendentes, presentes em nossos corpos, base simbólica de gestos, sons, imagens e palavras, suscita também, em nosso país, a urgência cotidiana de resgate da alteridade e da cidadania negada aos descendentes desses povos.

Isso implica viver o mundo de uma maneira nova: olhar o passado em busca da origem e daí as vozes silenciadas as quais ninguém sabia que aí estavam. Assim não só os vivos, mas os mortos nos fazem demandas (2010). E é em nossos corpos que ecoam essas vozes.

A experiência significa também os sonhos não cumpridos. O tempo em Benjamin é como um relâmpago fenomenológico. É preciso estar no meio das trevas, pois só pode ver a luz do dia quem é capaz de atravessá-las, nos lembra Santa Tereza D’Ávila. É preciso atrever-se a dar um salto sem saber o que está do outro lado. Ir ao que está silenciado em nós, desqualificado e assim naturalizado, quase como um arqueólogo. A inovação, como futuro está no passado. Temos um corpo e muitas indagações a serem feitas. Um paraíso de possibilidades ou o inferno da ignorância. "As perguntas seguem abertas" (2010).

Bibliografia

JAY, M. Cantos de Experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Editorial Abada Madrid, 2009.

MATUS, T. Notas da Palestra: “Aportes de Walter Benjamin al Trabajo Social Contemporâneo”. Universidade do Chile e PUC-Rio, 2010.

[1] - Jay, 2009. Tradução livre: William Berger