Teatro do Oprimido:
memória e ancestralidade
Por: William berger
(ator, assistente social e multiplicador do teatro do oprimido)
EXPERIÊNCIAS teatrais COM POVOS TRADICIONAIS NO Espírito Santo:
os pomeranos I
(Domingos Martins)
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algum tempo fui alertado pelo poeta Waldo Motta sobre trabalho do
psicanalista Carl Gustav Jung. Desde a leitura de “O Homem e seus
Símbolos” despertou-se uma chama de auto-conhecimento em mim.
Auxiliado por Waldo, me lancei a analisar meus sonhos e os
acontecimentos de minha vida desde uma perspectiva simbólica. Quando
ainda estava no Rio de Janeiro, de 2009 ao início deste ano (2012), tive
contato com o movimento do Teatro Negro. Em oficina no Grupo Nós do
Morro, no Vidigal, conheci especialmente a artista Eliete Miranda, que
dança a cultura do povo afro-brasileiro com tamanha força e intensidade a
ponto de sempre emocionar seu público.
Convidado
ao final da oficina para participar de sua Cia de Dança, a Corpafro,
Eliete despertou em mim outra chama que veio aumentar o fogo do
auto-conhecimento: a importância da memória e da ancestralidade.
Durante dois intensos anos entre o trabalho de Eliete Miranda e também
com o teatrólogo Amir Haddad e do antropólogo Roberto Damatta (meu
professor na PUC-Rio), pude beber intensamente na fonte da cultura
negra, também com minha orientadora do mestrado em Serviço Social Denise
Pini Rosalém da Fonseca. Tanto Denise como Eliete pesquisam Orixás
femininos: Oxum, Obá, Iansã, Nanã, Yemanjá, mergulhando nas raízes
mitológicas e no universo social de mulheres-deusas e mulheres-negras da
Bahia e do Rio de Janeiro. Denise também pesquisa escritoras negras dos
EUA onde fez seu mestrado em Estudos Latino-americanos. Amir Haddad
destaca como base de seu trabalho o Carnaval, o Futebol e o Candomblé.
Roberto Damatta completa a leitura com seus clássicos “Carnavais,
Malandros e Heróis” e “A Bola que Corre Atrás dos Homens”.
De posse dessa sabedoria milenar, e de nossa cultura popular brasileira extremamente diversa, onde o Teatro de Rua de Amir Haddad e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal se tornaram o cimento de minhas práticas, passei a me perguntar, no contato com esses artistas e pesquisadores: quais são as minhas raízes, de onde vim, quem sou e onde quero chegar? Uma questão que Waldo Motta também havia me provocado em mais de sete anos de trabalho ao seu lado.
Olhei para trás e vi minha terra, o solo de onde saí, o Espírito Santo, o povo pomerano, também o negro quilombola, de onde tenho raízes com meu avô materno e o povo cigano,
o qual herdei também por linhagem materna. Por parte de meu pai: os
pomeranos e os alemães, também os descendentes de italianos no Brasil.
Começo
esse texto falando de minhas próprias raízes, pois aprendi estar aí o
fio da meada, a ponta do novelo. Puxar essa ponta, pode nos possibilitar
o eterno retorno à fonte criadora da Cultura onde se encontram em
estado de fusão todas as nossas lembranças que remetem à infância e
inclusive aquelas das quais não lembramos, mas que fazem parte do
substrato comum da memória coletiva e do que Jung chama de Inconsciente Coletivo, onde habitam os Arquétipos, imagens e princípios criadores da humanidade.
No
início de 2012 decidi retornar à minha terra e o convite veio da
Associação Diacônica Luterana, instituição da IECLB, para atuar na
formação de jovens lideranças. O objetivo: ministrar aulas de Comunicação e Expressão e Corpo em Expressão
com foco na metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, trabalho
no qual venho mergulhando desde o ano de 2004 e do qual ministrei duas
oficinas na ADL em 2009 e em 2011.
Além
das aulas na ADL recebi a responsabilidade de assumir junto com o
pedagogo Gilmar Hollunder o Departamento de Desenvolvimento
Comunitário, a partir do qual propus à instituição oficinas de Teatro
do Oprimido para as comunidades e paróquias do Sínodo, com enfoque
especial em aspectos da memória e da ancestralidade.
Acompanhado
de meu companheiro de trabalho e multiplicador de Teatro do Oprimido
Alex Reblim Braum, a primeira a pedir a nossa presença foi a Paróquia de
Califórnia em Domingos Martins, nas serras do Espírito Santo, região
fria onde os pomeranos a século e meio vêm mantendo e reiventando seus
constumes tradicionais trazidos da Europa no início do século XX, quando
aqui chegaram no período da imigração e fugidos do nazismo na Segunda
Guerra Mundial. Seguem algumas imagens do trabalho.
Esta
árvore centenária, tanto quanto o templo luterano de mais de 140 anos
criam uma espécie de equilíbrio com o lago e a casa (Yin e Yang). Ao
fundo há uma reserva ambiental onde prevalece a Mata-Atlântica e um
clima ameno. Desenvolvemos jogos e exercícios das 5 categorias do Teatro
do Oprimido: 1. Sentir Tudo que se toca; 2. Escutar Tudo que se Ouve;
3. Ver Tudo que se Olha; 4. Ativando os Vários Sentidos; e 5. Memória
dos Sentidos. Aplicamos a técnica “Ser Humano no Lixo”, do qual fizeram
uma mulher que tem de trabalhar dentro e fora de casa, cuidar da roça e
dos filhos, presa à casa, sem tempo para usufruir da vida na
comunidade. Seguindo o costume local e uma tradição luterana, ao final
da oficina nos juntamos em oração por esse povo e pela humanidade, por
familiares e por nossas memórias, dessa vez em torno da árvore
ressignificada com nossas experiências teatrais entre corpo, espaço,
memória e ancestralidade.
O Corpo, a Árvore e o Espaço
Sentir
o espaço e sua dinâmica pela presença desta árvore centenária em mim
foi um ponto essencial para intuir algumas direções das reflexões entre
corpo e espaço, memória e ancestralidade, propostas para o grupo
adequando dessa forma técnicas de Teatro do Oprimido. O jeito doce e a
simplicidade, o sorriso do povo pomerano de Califórnia parece estar
plasmado no espaço. Povo e ambiente em constante troca. É claro que são
muitas as degradações socioambientais, como o desmatamento e os
agrotóxicos, o alcoolismo e as drogas entre os jovens principalmente,
mas quando se chega a esse lugar, se respira uma aura ancestral.
A
grande árvore-mãe abraça todo o povo. Contaram-me uma história de que
certa vez houve um grande conflito na comunidade, uma disputa: alguns
queriam derrubar a árvore e depois de muita conversa decidiram mantê-la
de pé. O sagrado se “manifestou” e a força desse ser que é a árvore e as
memórias que giram ao seu redor e correm vivas em sua seiva mantém viva
a comunidade. Não é por acaso que o símbolo escolhido por Augusto Boal
para o método do Teatro do Oprimido é uma árvore. A Árvore é um dos
símbolos mais fortes da humanidade. As imagens falam. . .
Árvore do Teatro do Oprimido
Jovem Pomerano. Califórnia (Domingos Martins-ES) 03 de 2012.
Técnicas de Teatro do Oprimido: “Ser Humano no Lixo”
Jovem e criança pomeranas de Califórnia com a revista Metáxis do Centro de Teatro do Oprimido
Jovens pomeranos: corpos em relação comunitária
Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”
Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”
“Viagem Imaginária”: exercício da 4ª categoria do Teatro do Oprimido (ativando os vários sentidos)
Esquema “Corpo em Expressão”
Os
africanos têm na árvore Baobá o epicentro de várias culturas. Em torno
dela vários povos se reúnem para realizar rituais aos seus ancestrais. A
Árvore liga o que vem das profundezas com os céus. No candomblé do
Brasil, por exemplo, Iroko, é um Orixá que é Árvore. Para os orientais o
corpo é comparado a uma árvore: a raiz está na base da coluna
vertebral, a cabeça é seu topo os membros são galhos: somos árvores ambulantes e movimentamos florestas de pensamento sensível.
A palavra Religião vem do latim Religare,
que significa religar-se ao divino, perdido ou esquecido em nosso
corpo. Para os povos tradicionais e também os povos orientais, o
religare só é concebível pela experiência corporal. Teresa de Ávila
encontrou esse princípio em uma época onde o corpo sofreu uma total
repressão, a Idade Média. O único conhecimento que se valorizava era o
simbólico vindo apenas dos homens, a mulher era puta, bruxa ou santa.
Com frequência Teresa foi acusada de todas essas alcunhas. Era apenas
uma mulher que buscou a Cristo de Corpo e Alma unidos. Cristo não era um
ser abstrato, ela o podia tocar e experienciar com seus sentidos.
Sem dúvida, Teresa já preconizava um pensamento Holístico (do grego holos, todo), onde somos um totalidade. Corpo espaço, consciência e ação então inteligados em uma enorme teia. Nenhum ato está isolado.
Pudemos explorar nessa oficina com os pomeranos também a investigação a respeito de uma memória corporal,
pois trazemos em nosso corpo as marcas do passado. Cada corpo carrega
em si a história do indivíduo, de sua coletividade e da própria
humanidade.
Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos tradicionais, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.
Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos tradicionais, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.
Walter Benjamin afirmou que o contato com o divino se produz
na linguagem. Destaca o lado mágico desta, quando, por exemplo, Deus
nomeia sua criação. A queda do homem do paraíso lhe extraiu a capacidade
de nomear as coisas no jardim do Éden; e na Torre de Babel se produziu a
“superdenominação”. A linguagem podia agora ser usada para mentir e
confundir, e passou a requerer o juízo para se distinguir entre ambos os
aspectos (2009, p. 372).
Não custa lembrar aqui que na cultura dos indígenas
Guarani-Mbyá, mestres da oralidade, a palavra assume lugar central. Em
seu ritual denominado Nimongaraí, próximo à colheita do milho e das
chuvas torrenciais do final do verão, o ceu cheio de raios, manifestação
de Tupã, forma o contexto onde o pajé recebe de Deus os nomes das
crianças recém-nascidas. Esse nome secreto, dado apenas aos que fazem
parte de sua cultura, designa o destino do indivíduo. Para alguns, seu
nome indígena é tão secreto que não pode ser revelado a ninguém além do
pajé e a si próprio, caso contrário a pessoa poderia perder a própria
vida.
Considerações finais
O resgate das memórias dos povos tradicionais presentes em
nossos corpos, base simbólica de gestos, sons, imagens e palavras,
suscita também, em nosso país, a urgência cotidiana de resgate da
alteridade e da cidadania negada.
Isso implica viver o mundo de uma maneira nova: olhar o
passado em busca da origem e daí as vozes silenciadas as quais ninguém
sabia que aí estavam. Assim não só os vivos, mas os mortos nos fazem
demandas (2010). E é em nossos corpos que ecoam essas vozes.
A experiência significa também os sonhos não cumpridos. O tempo
em Benjamin é como um relâmpago fenomenológico. É preciso estar no meio
das trevas, pois só pode ver a luz do dia quem é capaz de
atravessá-las, nos lembra Santa Tereza D’Ávila. É preciso atrever-se a
dar um salto sem saber o que está do outro lado. Ir ao que está
silenciado em nós, desqualificado e assim naturalizado, quase como um
arqueólogo. A inovação, como futuro está no passado. Temos um corpo e
muitas indagações a serem feitas. Um paraíso de possibilidades ou o
inferno da ignorância. "As perguntas seguem abertas" (SEPÚLVEDA, 2010).
Referências Bibliográficas
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
JAY, Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009.
SEPÚLVEDA, Teresa Matus. “Aportes de Walter Benjamin al Trabajo Social Contemporâneo”. Notas da Palestra. Universidade do Chile e PUC-Rio, 2010.
2 comentários:
Amigo William,
Achei fantástica a sua proposta voltada focada na questão da ancestralidade. Penso que este ocultamento das nossas raízes e da nossa história colabora para que a sensação de vazio e baixa auto estima, principalmente em uma sociedade que valoriza em demasia o supérfluo e efêmero. Parabéns! Estarei acompanhando seu trabalho.Um grande abraço. Sheila
Oi Sheila, muito obrigado pelo comentário, sem dúvida, você faz parte desta busca e nossas andanças teatrais com os Tupiniquim reforçaram esta perspectiva. É de fato uma questão fundacional da identidade nacional a baixa auto-estima que foi posta pelo colonizador em nossa infância como Nação. Reconhecer e valorizar os saberes das diversas etnias, povos e nações indígenas e demais povos tradicionais pelo retorno à Ancestralidade, é uma dos maiores imperativos para esta sociedade Moderna Ocidental, degradada pela perda da experiência ritual. O Teatro e os Povos Indígenas nos apontam caminhos de resgate de nossa essência. Grande bj e saudades de nossos diálogo. Grande amiga!
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