quinta-feira, 16 de julho de 2015

Banalizou-se o sofrimento, tanto social quanto pessoal: jovens e pobres, os mais afetados pela violência econômica no país


Banalizado, o discurso sobre a violência, dissocia-se o sofrimento humano social de suas causas subjacentes: Leticia Cufré Marchetto, pesquisadora da Universidad Veracruzana (UV).
Por: David Sandoval
Tradução livre: William Berger

O uso de termos como "dano colateral" e "o custo do progresso" são tais que os temos utilizado com cinismo nos discursos sobre violência.
A violência no México não se limita à violência física, há outras formas de violência econômica e moral ou simbólica e afeta particularmente os jovens, os pobres e, em geral, a população mais vulnerável, disse Leticia Cufré Marchetto, membro do Instituto de Pesquisa de Psicologia da Universidad Veracruzana (UV).
Segundo a pesquisadora, cujos estudos giram em torno da relação entre subjetividade e violência, o psicanalista francês Christophe Dejours,  fala da "banalização do sofrimento social" e nos relatórios constatamos que nos acostumamos ao sofrimento: "Mesmo desnecessária,  a banalidade nos discursos para os crimes mais terríveis é evidente".
Para Dejours, a função desses discursos, se a intenção nem sempre consciente sustenta,  é a desconexão entre o sofrimento humano e suas causas  que provocam injustiça social, disse Leticia Cufré.

A empresa é particularmente injusta para os jovens
Cufré Marchetto também disse que "nossa sociedade é particularmente injusta para os jovens, que muitas vezes concedem-lhes muitos dos males que, na verdade, são herdados dos adultos. Ao pesquisar a violência como fator desconfortável, em parte porque toda a reivindicação implica “o outro", é difícil reconhecer a violência dentro de nós mesmos, por isso, tendem a ser cúmplices dos outros, para esconder a nossa, disse a acadêmica. "A questão é como boas pessoas com um trabalho mais ou menos satisfatório, com um padrão de vida e educação média, podem suportar o sofrimento dos outros como algo normal, todos os dias, como não pode ser sensível ao sofrimento do outro".
Ela disse que o cúmplice, por vezes, adapta-se de forma acrítica a uma realidade violenta, torna-se parte da maneira de sobreviver, por isso, se acostuma à corrupção e à discriminação, negando o essencial para nossos valores individuais. A pesquisadora explicou que os seres humanos "fazem muitas coisas para sobreviver, suportam não só fisicamente mas também psicologicamente”.

A escalada da violência
"Diante da escalada da violência, a adaptação é muito cruel, porque as defesas que devem ser desenvolvidas para sobreviver, tornam-nos insensíveis, não só ao sofrimento, mas também ao prazer", acrescentou. "Acontece que para negar ou ignorar o ato violento, devemos dissociar-nos de nossos próprios sentimentos", disse Marchetto Cufré.
"Parece que, para sobreviver, podemos fazer qualquer coisa em qualquer lugar e nos colocar em uma posição de pressão e sofrimento de impunidade e irresponsabilidade, Poder fazer coisas terríveis e se acostumar com elas." É uma estrutura subjetiva que lhe permite viver ignorando as partes desagradáveis ​​da realidade, explicou a pesquisadora.
Assim, "é muito difícil identificar o culpado, se são aqueles que deveriam nos proteger do abuso, os responsáveis ​​ou, especialmente, se são têm alguma relação com uma forma de poder".
Cortar os orçamentos para a educação também é violência.
Em relação às preocupações que existem sobre se o nosso país terá problemas de violência tão graves como os de outros países, disse Cufré, não podemos fazer previsões, mas talvez devêssemos estar mais preocupados com a violência em curso no nosso país.
"Orçamentos de educação mais baixos? Que é a violência, especialmente considerando as necessidades de todos e de quem é afetado, exemplificou a pesquisadora,  "o desemprego também é violência ".
A educação pública tem sofrido nos últimos anos, muitos cortes orçamentários que estão sendo sentidos especialmente na população com menos recursos; universidades públicas são um exemplo, para os graduados é cada vez mais difícil o acesso a bons empregos, a violência do poder é uma forma de violência, apontou Cufré.

Outra forma de violência: o poder

Cufré disse que o exercício do poder é difícil e a saída violenta é sempre uma tentação do fast lane. "O ato de considerar que a única lei é a do maior ganho, nas decisões tomadas pelas pessoas que estão no poder, tende a beneficiar apenas os grupos que os apoiam." O resto da população, numa espera difícil, geralmente acaba aceitando os discursos oficiais que dizem que todo esse estado de coisas é "natural".
O uso de termos como "dano colateral" e "o custo do progresso"  têm sido utilizados com cinismo nos discursos.". Eles são os elevados custos que não podemos medir, porque aqui não há preço definido e também há fragilidades subjetivas no sentido de que há pessoas que estão sofrendo mais do que outros, têm menos defesas e número menor de mecanismos para se preservar".
O conflito mais sério, sublinhou, é que as pessoas são usadas para fazer coisas como esta: "No que diz respeito ao tema da cultura, que é coletivo, social, por definição, ser privatizado tudo o que foi construído com tanto esforço, é algo violento. O lucro deixou para os poucos o resultado dos esforços de quem trabalha muito. "
No entanto, Cufré ressaltou que esta tendência não é necessariamente fatal e podem haver oportunidades para inverter a situação, e que há muitas pessoas que propõem alternativas", não muito claras, no entanto, não completamente terminadas, mas as portas estão abertas para despertar as consciências".

Para a nossa reflexão:

"A violência não se limita à violência física, há outras formas de violência econômica, moral ou simbólica e afeta particularmente, os pobres e, em geral, os mais vulneráveis".
"A questão é, como boas pessoas com um trabalho mais ou menos satisfatório, com um padrão de vida e educação média, suportam o sofrimento dos outros como algo normal, todos os dias, como podem não serem sensíveis ao sofrimento dos outros."
"Orçamentos de educação mais baixos? Que é a violência, especialmente considerando as necessidades de todos, o desemprego também é violência ".
A educação pública tem sofrido nos últimos anos, muitos cortes orçamentários que estão sendo sentidos especialmente na população com menos recursos; universidades públicas são um exemplo, aos graduados é cada vez mais difícil o acesso a bons empregos, a violência do poder é uma forma de violência
Entrevista com Dra. Leticia Cufré Marcheto
Xalapa, Veracruz. México

2011

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O território Guarani-Mbyá: cosmologia e biodiversidade como direito social


Seminário Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável no Brasil
Tema: O território Guarani-Mbyá: cosmologia e biodiversidade como direito social*

Por: William Berger ¹

Introdução

O presente texto aborda alguns pontos de suma importância para se entender a relação entre territórios, saberes das populações tradicionais e a garantia dos direitos dos povos indígenas. Lança um breve olhar sobre a questão indígena no ES, em especial a relação dos Guarani-Mbya e o Mito da Terra Sem Mal, que estabelece uma dinâmica migratória em seu território, até então violado e extremamente não-reconhecido pela sociedade envolvente.

Território, Biodiversidade e Saberes das Populações Tradicionais

Com esse titulo a autora Edna de Castro realiza uma importante discussão a respeito da relação entre as mais recentes abordagens sobre territórios e “povos tradicionais” nas ciências sociais e nas ciências da natureza. A preservação dos ecossistemas e da biodiversidade depende do reconhecimento dos saberes fundamentais de manejo de comunidades tradicionais, que, ao longo do tempo elaboraram um profundo conhecimento sobre os ecossistemas, o que lhes garantiu até a atualidade a reprodução de seu modo de vida, seu sistema social e cultural. (Castro, 2000)

Diante das mudanças econômicas e tecnológicas na era global, retomar valores tradicionais e as concepções sobre territórios e biodiversidade tem se tornado um importante instrumento de garantia dos direitos desses povos. 

O território é aqui entendido como “o espaço ao qual um certo grupo garante aos seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade no tempo.” (Castro, 2000)

Conforme Godelier apud Castro (2000) o território reivindicado por dada sociedade se constitui em um conjunto de recursos e relações de aspectos visíveis e invisíveis, reunindo elementos técnico-materiais, mágicos e rituais, em uma palavra, simbólicos (Castro, 2000). A relação entre o tempo cotidiano e o tempo dos mitos tem de ser considerada profundamente, pois faz parte de uma relação que integra a vida econômica, tendo sido construída ao longo de muitas e muitas gerações. Estudos da etnociência e da antropologia cultural podem comprovar tais afirmativas (Castro, 2000: 166 e 167).

O conhecimento técnico e econômico ignora esses saberes, e, dessa forma, as identidades étnicas de diversas nações indígenas, por exemplo, têm sido suplantadas em prol da ideologia desenvolvimentista (Castro, 2000).

Assim, as associações ocidentais entre populações tradicionais e desenvolvimento sustentável têm tido cada vez mais abrangência e têm gerado desafios para o conhecimento produzido nas ciências sociais, que é o de defrontar as explicações da relação homem X natureza (Castro, 2000).

Como se dá essa relação para os Guarani-Mbyá?

Um importante estudo sobre os Guarani-Mbya de todo o litoral brasileiro vem sendo feito pelo Centro de Trabalho Indigenista do Centro de Ciências Sociais da PUC-SP, sob orientação da professora Dr. Maria Inês Ladeira.

Essa autora vem pesquisando a relação dos Guarani-Mbya com seu território. Conforme Ladeira (2004) é preciso lançar um olhar mais depurado sobre a relação desse povo, seu território e o mito da “Terra Sem Mal”, pois os Guarani-Mbya estão à procura do paraíso terrestre, e por esse motivo têm, desde antes dos tempos da Colonização, uma dinâmica migratória, sob um vasto território à beira-mar, que vai do litoral do Rio Grande do Sul até o Espírito Santo, com amplas extensões para o interior, cobrindo a quase totalidade do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, além de partes de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul e de extensões na Argentina e no Paraguai (Ladeira, 2004)

Conforme o mito, seu paraíso se encontra além do mar, do Oceano Atlântico, e em visões e pajelanças esse povo foi eleito e revelado por Yanderu (Deus supremo) para adentrar o paraíso em vida. Porém, só os que se mantém fiéis às caminhadas, poderão usufruir da realização da promessa (Ladeira, 2004).

No documentário “Cruzando o Deserto Verde” podemos constatar a persistência do mito até os dias de hoje na fala, por exemplo, do cacique Guarani da Aldeia Boa Esperança (ES):

Quando nós cheguemo aqui no Espírito Santo. Nós cheguemo num lugar que mi avô tem a procura da terra prometida. Então eu sei que aonde nós tamo, aqui, é uma aldeia revelada.
                 (Cacique Jonas Carvalho – Guarani-Mbya. In: Documentário 
                 “Cruzando o Deserto Verde” – FASE-ES)

Durante séculos a dinâmica territorial desse povo tem sido ignorada sob o argumento de que perderam sua identidade cultural e logo não se justificaria, assim, a posse do território. Dessa forma foram expropriadas suas terras, devastadas as matas e mortas incontáveis gerações de Guaranis.

Passaram então a camuflar sua identidade usando as roupas do homem branco a fim de preservarem suas vidas e sua cultura. Conforme Ladeira (2004), esses indígenas têm de ser considerados em sua totalidade independente das distâncias que marcam suas aldeias, pois as relações de parentesco entre o Mbya são até hoje extremamente observadas. Se consideram, em diferenciação ao Guarani Nhandeva e Kaiowá (ou Xiripa), o povo eleito por Yanderu para adentrar a “Terra Sem Mal”, por isso a realização dos casamentos, por exemplo, não abre excessão nem mesmo entre a nação Guarani (composta dos três povos Mbya, Nhandeva e Kaiowá - ou Xiripa - ) (Ladeira, 2004).

Ocupam assim e necessitam preservar uma extensão territorial de uso exclusivo e em lugar não-fixo, pois têm uma ocupação não-estática do território, justificada pelo sistema religioso (Ladeira, 2004).

A forma como tem sido pensadas as Unidades de Conservação e Unidades de Proteção Permanente no território desses povos, tem excluído uma dinâmica tradicional, que estabelece uma forma equilibrada de manejo da Mata-Atlântica, devastada progressivamente ao longo do litoral brasileiro, em primeiro plano, pela racionalidade colonialista.

Essas comunidades deveriam estar recebendo a proteção ambiental de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, estendendo assim a possibilidade para as demais comunidades indígenas de realizarem seus zoneamentos e seus próprios planos de gestão sem maiores entraves ao reconhecimento e conservação de seus direitos originários (2004:13).

Considerações Finais

Não podemos continuar a ignorar os direitos dos povos indígenas em nosso país e sua relação tradicional com seus territórios. Toda e qualquer política pública deve levar em conta seus sistemas religiosos e sua dinâmica territorial, a fim de que realmente se façam garantidos seus direitos de preservar seu território, sua cultura, seu modo de vida, caso contrário estaremos levando a morte cultural a esses povos, já que sua cosmologia tem um outro tempo e um outro espaço.

Notas

* Seminário apresentado na Disciplina "Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável no Brasil", sob orientação do professor Pós Dr. Rafael Soares Gonçalves.

1 -  Assistente Social, ator, multiplicador do Teatro do Oprimido (RJ). Mestre em Serviço Social (PUC-Rio). Pesquisador da Questão Indígena na área do Serviço Social. Articulador Nacional da Questão Indígena.

Bibliografia

CASTRO, Edna de. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. In: DIEGUES, Antônio Carlos (org.). Etnoconservação novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000. 290 p. p. 165-182.

Documentário: Cruzando o Deserto Verde. FASE. Vitória –ES: 200?.

LADEIRA, Maria Inês. Terras Indígenas e Unidades de Conservação na Mata Atlântica – áreas protegidas. In: Marandú Revista Eletrônica do CTI (Centro de Trabalho Indigenista). Ano I, n° 2, Agosto/2004.

domingo, 13 de janeiro de 2013

A Árvore do Teatro do Oprimido . . .

 

Arte gráfica: Marília Pozzibon


Ao longo de 23 anos de sistemático trabalho com o Centro de Teatro do Oprimido e seus multiplicadores Brasil a dentro e mundo a fora, nosso grande mestre Augusto Boal deixou como legado um método teatral profundamente transformador e humanizante: o Teatro do Oprimido. E não é à toa que o símbolo escolhido foi a Árvore, pois resgata o sentido da ancestralidade. Toda árvore é um universo completo e comporta sustentabilidade: o solo que é alimento, a raiz que aprofunda, alimenta e rompe a pedra, o tronco que sustenta, a copa que se expande, o fruto que envolve o pássaro, a semente viaja em seu interior. A árvore alimenta o mundo, e se expande: multiplica!
O Teatro do Oprimido começa sempre pelo alimento de sua árvore que é a Ética e a Solidariedade. Todas as cenas surgem de uma urgência, uma necessidade do grupo, uma opressão que seus participantes vivenciam e querem discutir com a sociedade.
O chão, a base que sustenta todas as intervenções do Teatro do Oprimido, é a realidade, consubstanciada na Economia, na Política e na Cultura e se amplia com a Pedagogia, a História, a Sociologia, os Direitos Humanos, a  Ecologia etc.
Todos os exercícios do Teatro do Oprimido se estruturam sobre três alicerces da comunicação: Palavra, Som e Imagem (raízes axiais). A Palavra recriada, está associada à poesia, à narrativa e ao teatro. O Som privilegia aqueles produzidos no e pelo corpo e com objetos do lixo (o lixo tem haver com o que é rejeitado, desprezado, o oprimido. Por isso temos que recriá-lo). E a Imagem, ao alegórico, à representação e desconstrução crítica do mundo das imagens, um mundo que a manipula para o lucro e  escravização dos espectadores passivos. Expressamos sempre a cara de cada grupo praticante do Teatro do Oprimido, seus temas, opressões e que mundo queremos. As imagens falam, gritam, cantam, dançam, expressam.  
 Somos o tempo todo invadidos por palavras, sons e imagens que nos ditam ordens imperativas de consumo e alienação, sempre esclareceu Boal.  
Cada grupo de Teatro do Oprimido, por exemplo, é incentivado a criar sua bandeira, que é uma versão crítica do grupo sobre a bandeira do Brasil, usando cores e formas que mostram a realidade tal como ela é e como queremos que seja.
Prossigamos a entender a técnica (forma) Teatro Fórum. Conforme relato dos curingas Olivar Bendelak e Cláudia Simone em oficina no Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro em 2006 (que também está presente na versão de Boal em seu livro “Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas”), surgiu de uma situação em um grupo quando uma participante trouxe para o encontro algumas cartas que o marido guardava, cartas essas de sua amante.
Como ela não sabia ler e escrever ele sempre a enganava dizendo que eram recibos do terreno que estavam comprando. Sempre que se aproximava do marido para conversar, esse, nervoso, mandava ela servir rapidamente o jantar. Ela então levou a situação para o grupo ajudá-la a resolver. Criou-se uma cena de TO e levaram a situação de opressão a público. Uma mulher da plateia se indignou muito e indicava aos atores como queria que fosse a intervenção. Só que nenhum dos atores e atrizes faziam da forma como ela desejava.
Então, após algumas tentativas, quando a mulher da platéia já ia desistindo e saía chateada do encontro, Augusto Boal a indagou por que ela estava se retirando. E a chamou então para subir e ela mesma fazer a cena do jeito que queria. E ela subiu, executou a cena no lugar da atriz, abriu o jogo com o marido, deu – lhe uma surra, o perdoou, e o colocou para servir o jantar. E assim surgiu a primeira intervenção do tipo Teatro Fórum, onde o próprio público é convidado a subir ao palco para realizar a intervenção na realidade que está sendo retratada na cena teatral. Um verdadeiro ensaio para a realidade mesma. O Teatro Fórum vem sempre para responder a uma questão ou um problema que o oprimido e/ou o grupo ainda não sabe como resolver.
Outra forma teatral da Árvore do Teatro do Oprimido é o Teatro Invisível (que vimos de forma suscinta acima), onde alguns atores ensaiam um texto que retrate uma situação que seja uma necessidade do grupo. Depois de alguns ensaios, se vai para a rua, ou um ônibus, um espaço público. As pessoas nesse espaço não sabem que a situação se trata de teatro e os atores fazem de tal forma a convencer as pessoas de que é uma situação cotidiana.
Dentro da situação alguns atores soltam frases que levem a uma discussão mais política sobre a situação que seria meramente cotidiana sem essa necessária mediação. Não se diz que é teatro ao final da intervenção. E daí seu caráter invisível. A intenção é que as discussões continuem nos ônibus, casas, etc. Ao final, os atores, um a um saem da situação e retornam ao grupo para discutir os resultados (longe dali, é claro).
O Teatro Legislativo é uma mistura interessante de Teatro Fórum com o ritual da câmara legislativa. E consiste no seguinte: realiza-se as intervenções do público na cena e, após, retira-se encaminhamentos que se transformam em proposta de leis. Quando Boal foi vereador no município do Rio de Janeiro, foram aprovadas 15 leis (13 municipais e 2 estaduais e existem mais algumas em tramitação). Todas foram retiradas das demandas discutidas na rua e em diversos espaços públicos, tendo a intervenção ativa dos participantes. Uma dessas leis, por exemplo, foi uma sugestão de uma moça de 15 anos em uma apresentação de Teatro Fórum e sessão de Teatro Legislativo no meio da rua a respeito do tema “DST AIDS”. A sugestão dela virou um projeto de lei, que foi aprovado e hoje serve de base para um amplo programa na Secretaria de Saúde do município do Rio e Janeiro, entre diversas experiências em variadas áreas como Terceira Idade, Saúde Mental, Criança e Adolescente, Juventudes, Reforma Agrária, Racismo, Direitos Humanos etc.
O “Arco-íris do Desejo” consiste numa série de exercícios que trabalham com as demandas subjetivas. Surgiu no exílio de Boal na década de 70, quando passou a praticar Teatro do Oprimido na Europa. As pessoas com as quais praticava diziam que não tinham problemas econômicos e políticos como na América Latina, onde surgiu o Teatro do Oprimido, mas reclamavam de solidão, depressão, tristeza, problemas (sociais) de ordem subjetiva.
Para tanto, Boal estruturou uma série de exercícios e jogos que culminaram no “Arco-íris do desejo”. A intenção final de Boal é fazer com que as demandas desses exercícios sejam levadas para o Teatro Fórum e, discutidas socialmente, sejam encontradas saídas coletivas: ver de quanto objetivo temos no subjetivo.
Em seu livro “O Arco-íris do Desejo”, Boal diz:

[ . . .] Ser ator é perigoso; porquê? Porque a catarse que assim se busca não é inevitável. Mesmo tendo todas as seguranças da profissão, mesmo tendo todas as proteções dos rituais teatrais, mesmo que se estabeleçam teorias sobre o que é a ficção e o que é a realidade, mesmo assim esses personagens despertados podem se recusar a voltar a dormir, esses leões podem se recusar a voltar para o zoológico das nossas almas e às suas jaulas.
Se assim é, podemos pelo menos contemplar a hipótese contrária: uma personalidade doente pode, teoricamente, tentar despertar personagens sadios, e isto com a intenção, não de reinviá-los ao esquecimento, mas de misturá-los à sua personalidade. Se tenho medo, tenho dentro de mim o corajoso; se posso acordá-lo, posso talvez mantê-lo desperto. [ . . .] Se o Ator pode ficar doente, o doente pode ficar Ator.                                                                                              (Boal, 2006, p. 52)

O Teatro Jornal surgiu na década de 1970, quando Boal praticava TO em associações, sindicatos e igrejas para discutir a questão política no Brasil e enfrentar a Ditadura Militar.
As Ações Diretas acontecem quando o grupo preparado vai para a rua, para o espaço público realizar as intervenções diretas na realidade.
O Teatro Imagem em termos práticos visa montar a imagem da opressão através de expressões com os corpos dos integrantes do grupo. Montar verdadeiras fotografias da cena. Uma pessoa sempre ficará de fora como testemunha, para dizer se a imagem montada realmente retrata a crise. Realizar rodízio de imagem com diferentes pessoas para montar e para ser testemunha.
Na pintura: contar uma história com três imagens pintadas pelo grupo. Deixar sempre que o público faça primeiro seus comentários, depois o grupo se manifesta; nas esculturas: com objetos diversos, e materiais recicláveis montar esculturas da situação de opressão e criar figuras de seres humanos onde cada participante coloca um objeto por vez sem tirar do lugar a posição do objeto de outra pessoa. Experimentar também em diversas posições no espaço.
A realização de exercícios de imagem da cena descondiciona o aprisionamento do corpo, das ações e da imaginação que a palavra pode criar se começamos direto pelo texto. Na estética do Teatro do Oprimido os objetos também contam história, integrados na tríade PALAVRA – SOM – IMAGEM, para potencializar as faculdades perceptivas dos oprimidos. Nesse processo são experimentadas diversas linguagens artísticas.
A Estética do Oprimido fundamenta-se na acertiva de que nós somos mais do que pensamos ser, podemos nos expandir intelectual e esteticamente para compreender o mundo e buscar sua transformação.
Conforme Boal,

A Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que quando, em cada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial – células do sistema nervoso – esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como bytes de um computador, armazenando informações estáticas. Eles não se esgotam nem se repletam – o saber não ocupa espaço diz a sabedoria popular! Ao contrário dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens simultâneas – sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais – enriquecendo suas funções e ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redes cada vez maiores de circuitos, estabelecendo relações entre circuitos conjugados que nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenham alguma semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.
(Projeto Teatro do Oprimido na Prevenção à Violência e à Criminalidade. Espírito Santo, 2008, p. 12)

Na Estética do Oprimido são três as principais vertentes, raízes da Árvore do Teatro do Oprimido, que ora citamos: Palavra, Imagem e Som.
A Palavra como símbolo, expressão dos desejos, esperanças, necessidades, experiências. A palavra e o sentido que recebe, carregada de desejos. Boal cita o exemplo da palavra Maria que vem associada a: “Maria, faz a comida”, “Maria lava, passa e varre a casa”. Maria é prenúncio de ordem, continência.
 Mas quando Maria escreve seu nome sobre o papel, porque sobre si tem muito a dizer, reflete sobre ele e o associa ao amor, ao prazer. Boal conclui sobre a palavra: “Escrever é uma maneira de dominar a palavra, ao invés de ser por ela dominado” (2008, p. 13).
A Imagem criada e produzida por nós e não apenas pelas máquinas[1] serve para recriar o mundo. Mudar a realidade, modificando as imagens dessa realidade. Através da pintura, da escultura, da poesia e da música se recria, reinventa o mundo.
Som, a música está presente em todos os recantos da vida humana. No corpo através dos ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (sono e fome). A música liga o humano ao seu divino perdido ou adormecido. Boal diz que é por ser tão importante (e perigosa diante da consciência desse ser humano) que os festivais e empresas fonográficas, distribuidoras encarceram a música para apenas alienar os ouvintes. A Música, o som produzido no e pelo corpo, com objetos recicláveis e também instrumentos cria a possibilidade de expansão do oprimido (2008).
A Sinestesia é a percepção simultânea de sensações diferentes. Palavra, Imagem, Som, Gosto, Cheiro, o todo que nos toma e nos leva de uma a outra área perceptiva (2008).
A Ética no Teatro do Oprimido é o ponto de partida para qualquer ação, exercício ou reflexão. É necessário a todo instante que o praticante de Teatro do Oprimido saiba por que age e qual o significado da ação ética de cada sujeito. Sem dúvida uma ética-crítica, que envolve cada sujeito humano e nos convida a fazer parte, agir. Em uma palavra: deixar de ser espectador para assumir a tarefa histórica de atuar. Afinal como diz Boal, “Todos podem fazer teatro, até os atores”.
Conforme Boal, a maioria de nós, nem sempre, usa os sentidos plenamente. Vivemos uma vida sem senti-la, e, tristemente, muitos não se dão conta disso durante toda a vida. Boal destaca que é preciso despertar o corpo, pleno de possibilidades para exercitar toda a sua potencialidade. Não só as palavras comunicam, temos um corpo pleno de expressividade, capaz de criar imagens, sons e palavras, que, recriadas artisticamente, possam romper com toda forma de opressão e que seja capaz de conduzir todos os oprimidos à descoberta da Liberdade e da Libertação: criarmos nossos caminhos ao caminhar.

Referências bibliográficas



BERGER, William & FONSECA, Denise Pini Rosalem da. O Teatro do Poder e o 
Teatro do Oprimido: formas de resistência e intervenção social em Caieiras Velhas.  
Aracruz, ES (2006-2011). Rio de Janeiro, 2012. 183p. Dissertação de Mestrado - 
Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


BOAL, Augusto. Stop: C’est Magique. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: 
1980.
_______. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. 6 ed. Rio de Janeiro. 
Editora Civilização Brasileira: 1991.
_______.O Arco-íris do Desejo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 2006.

_______. Jogos para atores e não-atores. 10 ed. Rio de Janeiro. Civilização 
Brasileira, 2007.

_______. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 

_______. Entrevista. Série Encontros com a Arte. Disponível em: 
http://www.youtube.com/watch?v=LWwzzDN2A1c&feature=related. Acesso em: 24 
set. 2011.

CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO. Projeto Teatro do Oprimido na Prevenção à 
Violência e à Criminalidade. Rio de Janeiro – RJ e Vitória – ES, 2008. (mímeo)



[1] - Estamos na era da “reprodutibilidade técnica” na expressão de Walter Benjamin, ou além dos “Tempos Modernos” de Chaplin?